Seu Francisco é um sorveteiro que perambula pelas ruas de Araçatuba vendendo seus picolés há mais de quarenta anos. Ou melhor, não perambula. Chico (para os clientes mais íntimos) sabe muito bem por onde anda. E repete seu longo trajeto diário desde sempre.
Dizer que o carrinho de Seu Francisco passa por Araçatuba inteira é exagero, mas cobre boa parte dela. Afinal, a andança dura doze horas. E o principal diferencial do sorveteiro (ou a característica mais marcante dele) é usar a voz no lugar da buzina.
Enquanto outros sorveteiros buzinam para avisar que estão passando, Seu Francisco canta. E que voz!
Tom grave, potência alta. Muitos o chamam de “Tim Maia dos picolés”.
Vários araçatubenses, inclusive, acreditam que Seu Francisco tem um dom mágico: o de cantar a música certa na hora certa, como ele desse recados para quem estivesse ouvindo. Uma premonição.
Vamos a alguns exemplos.
Quando Seu Francisco passou na frente da casa de Dona Adélia cantando Kid Abelha (“Amanhã é 23, são 8 dias para o fim do mês”), a aposentada até levou um susto. “AI, CARAI, AMANHÃ É VINTE E TRÊIS! DIA DE QUITÁ A ÚLTIMA PRESTAÇÃO DO SOFÁ!” Agradecida, Adélia comprou um picolé. “Brigada, Chico! Eu ia era me lascá com os juro!”
Alfredo, um pai de família de cinquenta e cinco anos que havia acabado de ser despedido, estava num boteco virando a quinta cerveja (havia, inclusive, pensado em beber até morrer) quando Seu Francisco passou cantando Raul Seixas. “Veja! Não diga que a canção está perdida. Tenha fé em Deus, tenha fé na vida. Tente outra vez!” Aquilo pegou Alfredo de supetão, deixando-o com a pulga atrás da orelha.
Parecendo saber o que se passava na cabeça do recém-desempregado, o sorveteiro seguiu a canção. “Tente! Levante sua mão sedenta e recomece a andar. Não pense que a cabeça aguenta se você parar. Não! Não! Não!” Alfredo largou o copo na hora. “Que po*a é essa?” E foi no último refrão que Seu Francisco fez Alfredo acreditar que aquela mensagem só podia ser para ele. “Tente! E não diga que a vitória está perdida. Se é de batalhas que se vive a vida. Han! Tente outra vez!” Alfredo jogou uma nota de cinquenta na mesa e saiu correndo para o meio da rua. Ao chegar perto de Seu Francisco, deu um abraço apertado no sorveteiro e caiu em prantos. “Obrigado! Muito obrigado!” É impressionante como a seleção musical de Seu Francisco intriga as pessoas. Larissa estava na frente de uma lotérica, na dúvida se gastava seu suado dinheirinho em apostas, quando o sorveteiro passou cantando. “Sonho meu, sonho meu…” Larissa desistiu na hora. Ricardo precisava decidir entre dois amores: Camila (a atual namorada) e Ana Paula (sua ex). Quanto mais ele pensava, mas confuso ficava. Até Seu Francisco passar em frente ao colégio onde o adolescente estudava, bem na hora da saída, cantando um antigo sucesso do pop nacional. “Camila, ah, ô… Camilaaa”. Ricardo correu comprar um picolé de limão. “Chicão, você é fda!”
Mas é claro que, como qualquer pessoa, Seu Francisco não agrada a todos. Muito menos sua cantoria. Silvio era um deles.
Como o sorveteiro passava na frente da casa de Silvio toda vez que ele estava brigando com sua esposa (não de propósito, mas porque acontecia com muita frequência), o garçom encasquetou que Seu Francisco a desejava. “Esse safado tá te querendo faz tempo, Marilza”. O pior é que não estava, era pura coincidência, mas aquilo deixava o marido (patologicamente) ciumento espumando de raiva.
Quando Marilza cogitou uma separação, Seu Francisco passou cantando Lulu Santos. “Eu gosto tanto de você que até prefiro esconder. Deixo assim ficar subentendido”. Quando Marilza jurou que nunca mais encostaria no marido, Seu Francisco mandou ver numa Marisa Monte. “Beija eu, beija eu, beija eu, me beija…” E quando Marilza reclamou para o marido que a vida era muito curta para sofrer e que ela acreditava em almas gêmeas, o sorveteiro cruzou a rua com o gogó nas alturas. “Duas forças que se atraem, sonho lindo de viver. Estou morrendo de vontade de você!”
Silvio, por várias vezes, até pensou em ir para a rua e agredir o sorveteiro. “Vou encher esse f*lha da [email protected]#$% de porrada!” Marilza o segurava. “Larga de ser ridículo! Cê tá precisando de psiquiatra!”
E eram tantas as pessoas que juravam terem sido avisadas pelos presságios musicais de Seu Francisco, que o sorveteiro, através de um decreto, acabou recebendo o Título de Cidadão Araçatubense, com direito a uma belíssima Sessão Solene.
A partir daquele dia, quem ainda não conhecia o sorveteiro ou ouvido sua cantoria passou a procurá-lo. Uma reportagem de TV até mostrou a rota diária de Seu Francisco num mapa da cidade para que as pessoas o encontrassem com mais facilidade.
Apesar da fama repentina, Seu Francisco nunca se gabou. E muito menos subiu o preço de seus picolés para se aproveitar da situação. Ao contrário: seguia o bom e velho sorveteiro que cruzava boa parte da cidade soltando sua bela voz através de grandes sucessos musicais.
A única coisa que mudou foi o número de clientes. Mesmo socando mais de cem picolés em seu carrinho surrado, a mercadoria de Seu Francisco se esgotava antes do meio-dia.
E como a mente de pessoas com ciúme doentio muitas vezes acaba tornando paranoia em realidade, Marilza e Seu Francisco se apaixonaram. Instantaneamente. Quando um bateu o olho no outro, as mãos de ambos ficaram mais geladas do que os próprios picolés que ele vendia.
Hoje, Seu Francisco e Marilza percorrem a cidade juntinhos. E conseguem dar conta da demanda, já que agora são dois carrinhos.
Coincidência ou não, a dupla sempre canta Jane e Herondy quando passa pela casa de Silvio. (Marilza) – Porque nunca na vida encontrei um amor verdadeirooo… (Seu Francisco) – Porque estando ao seu lado eu enfrento o mundo inteirooo…
É, Silvio.
O ciúme pode destruir relacionamentos.
Celso Dossi é escritor, colunista e roteirista. Contato: [email protected]
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