Caso inventassem um concurso chamado “A Araçatubense Mais Irritada do Mundo”, Dinorá provavelmente levaria o título. E com certa facilidade.
Ariana, cinquenta e nove anos, casada, mãe de três filhos e portadora de uma enxaqueca crônica, Dinorá tinha uma paciência microscópica, o que a fazia “explodir” diversas vezes por dia.
E como sua prole morava longe, era em Carlito, o marido, que ela costumava descarregar a raiva. Alguns vizinhos do casal, como Seu Astolfo e Dona Cícera, chegavam a enfiar bolas de algodão nos ouvidos para não ouvirem a gritaria. (Seu Astolfo) – Essa muié é doida. (Dona Cícera) – Fica quieto, homi. Não me arruma encrenca com vizinho. Soca algodão no ouvido e fecha essa matraca!
Numa manhã de sábado, debruçada no murinho branco que separava sua casa da calçada, Dinorá espumava pela boca. Literalmente. Vendo a cena, Carlito, como sempre, resolveu provocar a esposa. “Que tremedera é essa? Cê tá parecendo um pinscher”. Dinorá deu um único aviso. “Não tô boa, hein? Vai enchê o saco da nona!”
Carlito insistiu. “Cê tá chorano?” Para não avançar no marido, Dinorá foi irônica. “Não, tô cortano cebola. Agora pica a mula.” O marido queria entender a situação. “Acordo e minha mulher tá chorano no murinho com um jornal enrolado nas mão. Me explica que que tá aconteceno que eu volto pra dentro.”
Dinorá caiu no choro. “Que que tá acontecendo? É ESSE ZOOLÓGICO DE MERDA, CARLITO! Por que ainda existe zoológico no mundo? Tirá um monte de bicho do lugar deles e trancá numa jaula fedida só prum monte de marmanjo ficá levano os filho pra vê os coitado? Ah, vai tomar no c! Aqueles baita leãozão andano a vida inteira pra lá e pra cá, tudo triste, irritado, morano num cubículo quente de cimento pras pessoa olhá, ri e jogá pipoca? Si fud! Passô da hora do ser humano acabá!”
Carlito caiu na risada. “Cê tá chorando por causa de ZOOLÓGICO?” Dinorá previa um desaforo, razão pela qual o jornal estava enrolado em suas mãos. O ódio dela era tanto (da notícia que havia acabado de ler sobre o Zoológico Municipal de Araçatuba, do marido irritante, do calor excessivo, dos mosquitos da dengue, de tudo) que Dinorá havia decidido dar uma surra de jornal enrolado em Carlito. Mas, pela primeira vez, a aposentada conseguiu fechar os olhos, respirar fundo, contar até dez. E acabou tendo outros planos.
Durante toda a semana, Dinorá aproveitou o horário de trabalho do marido para colocar seu primeiro plano em ação. Chamou um marceneiro e mostrou a casinha do fundo (que a família usava como depósito). “Tira tudo. Depois arranca a porta e coloca uma grade no lugar. E num pergunta nada. Nem comenta por aí.”
No domingo bem cedo, Carlito reclamou do gosto do café. “Parece bosta.” E foi a última coisa que ele fez antes de acordar trancafiado. Ainda grogue, pensou que estivesse sonhando quando acordou deitado num chão frio com dois potes ao seu lado. Dinorá estava na porta. “Num deles tem água, no outro é comida. Tá trancado, pode gritá à vontade. Faiz as necessidade num cantinho.” Carlito realmente gritou à vontade. “SOCORRO!” Pena que os ouvidos dos vizinhos estavam cheios de algodão.
Antes que fosse presa por cárcere privado (Dinorá era irritada, não burra), a aposentada tratou de criar toda uma história para chamar a atenção da cidade. Convidou a vizinhança, ligou para os canais de TV locais e pediu para que o marceneiro filmasse tudo, afinal vídeos bizarros costumam bombar no YouTube, e ela sabia disso.
Com uma plateia grande na frente da jaula improvisada (onde Carlito tentava se esconder de vergonha, pois estava sem banho há dias e cercado de excrementos), Dinorá discursou.
“Esse é um homi, espécie de animal que, infelizmente, não tá em extinção. E é por causa dessa raça que existe os zoológico. Cêis sabia que os animal enjaulado vive metade do tempo dos animal solto? Que sofre depressão, maus-trato? Cêis gostaria de passar a vida assim? Trancado, triste, fedeno, mijando nos canto, só pra outros animal vê?”
Aproveitando os olhares abismados da plateia, Dinorá continuou. “Sabe aquelas orca que fica pulando nos parque dos Estado Unido? As que de veiz em quando mata um adestrador? Então, aquilo vai acabá. Vamo fazê o mesmo por aqui? Animal é pra vivê onde nasceu pra vivê. Os único zoológico que presta são os que cuida de animal em extinção”.
Depois, falou sobre o Zoológico Municipal de Araçatuba. “Essa merda já matou muito bicho. Ema, hipopótamo, leoa, onça, macaco. É sujo, vive abandonado, os poste de luz tudo quebrado, mato sem podá, lixo pra todo lado… Uma tristeza. Agora assinaro uma autorização pra cedê bicho em excesso pra outros lugar. Por que num doam todos?”
E terminou com uma proposta à população e às autoridades. “Um lugar tão bunito, a nossa cidade carece de divertimento, por que num uní o útil ao agradável? Leva os bicho prum lugar decente, revitaliza o parque inteiro e cria um Ibirapuera aqui em Araçatuba. Cheio de árvore, pro pessoal passeá com a família, corrê, caminhá, anda di bicicleta, fazê piquiniqui, passá o domingo embaixo de sombra, rodeado de verde. Coloca umas fonte, monta uns palco, faiz uns show… Os ambulante vendendo as coisa, todo mundo feliz. Imaginaro que delícia? Diversão gratuita pro povo.”
Antes que a polícia chegasse, Dinorá terminou o discurso, ordenou que parassem de gravar e, com a paciência de sempre, enxotou todo mundo. “Fiz minha parte. Agora cêis espalha o vídeo e as reportage de TV.” A aposentada ainda teve tempo de convencer o marido a não prestar queixa. Carlito disse à polícia que tudo havia sido planejado em conjunto e que ele passou a semana numa jaula improvisada por livre e espontânea vontade. “Chega de zoológico, seu guarda!” Carlito estava dividido. Uma metade dele estava puta por toda aquela humilhação, a outra já havia se conscientizado. “Ficá preso, passano calor e vendo os outro olhá é triste demais!”
A pressão dos araçatubenses foi tanta que o antigo zoológico acabou tendo seu nome mudado: Parque Municipal “Dr. Flavio Leite Ribeiro”. Revitalizado, limpo, bonito, alegre e agradável, o lugar passou a fazer a alegria de grande parte da população. Até quem costumava repetir “o zoológico faz parte da história da cidade” acabou ficando feliz com o novo ponto turístico da cidade. Que passou de último para primeiro lugar no Trip Advisor.
Os vizinhos do casal aposentaram os algodões nos ouvidos. Depois que o Parque Municipal começou a funcionar, Dinorá passou a correr diariamente por lá, o que fez toda aquela raiva que aposentada carregava no peito se dissipar. “Corrê é melhó que transá! Ai, que bença!”
Já Carlito demoliu a casinha do fundo, só por precaução. “Vi muita coisa ruim nesse vida, mas cagá e num podê limpá o rabo é a pior de todas elas.”
Celso Dossi é escritor, colunista e roteirista. Contato: [email protected]
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